quinta-feira, 11 de novembro de 2010

DA FÁBRICA PARA A UNIVERSIDADE

Rogério de Oliveira

  Mas, refletindo bem, parece uma insensatez preferir a razão à felicidade.
Voltaire - A História de um Brâmane

No início da década de 80, eu era filiado ao sindicato dos metalúrgicos, trabalhando na ferramentaria1 de uma multinacional.
Lembro-me que cada peça a ser trabalhada era acompanhada de um cartão, que indicava o tempo previsto para execução do serviço. No final de cada mês, eu deveria somar os tempos previstos das peças em que trabalhei e, comparando com a carga horária do mês, deveria atingir a meta de 110% de produtividade. Na época ficava me questionando: por que 110%? Se os engenheiros achassem que cada peça poderia ser concluída em menor tempo, então por que não diminuíam o tempo previsto, de forma a exigir apenas 100% de produtividade? Hoje eu arrisco uma resposta: o objetivo da empresa era obrigar cada funcionário a trabalhar sob pressão. O objetivo era fazer com que cada funcionário tivesse consciência de que não bastaria fazer o normal; ele teria que se superar.
Assim, a empresa fazia com que seus operários trabalhassem sempre no limite e, portanto, praticamente ninguém conseguia ser um bom trabalhador (segundo critérios estabelecidos pela própria empresa). Alguns trabalhadores atingiam a meta, mas, para isso, abriam mão da segurança: não utilizavam equipamentos obrigatórios e forçavam a máquina, correndo risco de acidentes. Ou seja, a grande maioria dos operários era criticável. Se um deles era bom em um aspecto, provavelmente seria ruim em algum outro e, portanto, ele sempre estaria “devendo” ao patrão.
Assim, a meta de 110% era difícil de ser alcançada, porém, alguns poucos a atingiam, e eram utilizados como exemplo pela empresa, no velho estilo “operário padrão”. Serviam para mostrar que era possível atingir a meta. Não era levada em conta a condição de trabalho, como qualidade da máquina ou ferramentas, ou se o trabalhador era um bom companheiro de trabalho ou se auxiliava colegas novatos.
Lembro-me de que alguns “colegas” eram úteis ao patrão e, geralmente, eram alguns destes que atingiam a meta de produtividade. Vou classificar estes “colegas” em três categorias: puxa-saco, dedo-duro e pelego. O puxa-saco era aquele indivíduo capaz de se humilhar para agradar o chefe e, apesar de não ser considerado um colega confiável, não era necessariamente desleal. O dedo-duro era aquele sujeito que todos sabiam ser um informante do chefe e, quando ele chegava, todos se policiavam. O pelego era o “amigo”, o “companheiro” que algumas vezes tentava convencer os outros de que o patrão era bom ou tentava amenizar algumas atitudes do chefe, mas, eventualmente, apoiava reivindicações e reclamações da maioria para ganhar a confiança dos colegas. Entretanto, o pelego não passava de um “agente” infiltrado. Assim, os pelegos andavam pela fábrica, mas ninguém sabia, com certeza, quem eram eles. Um pelego, quando desmascarado, geralmente tornava-se um dedo-duro.  
Alguns destes colegas, úteis ao patrão, até conseguiam alguma promoção e algum salário adicional como recompensa. A maioria, porém, recebia o mesmo salário. A recompensa, geralmente, era melhor condição de trabalho, como uma boa máquina e ferramentas novas (o que era importante para se atingir a meta de produtividade) ou o local mais agradável do setor. Estes colegas podiam, ainda, ser dispensados de horas-extras (se quisessem), cometer algumas irregularidades sem a punição dada aos demais trabalhadores ou serem dispensados da produtividade de 110%, já que não era pública a produtividade de cada um.
Existia um outro tipo de colega que também era útil ao patrão: era o “caxias”. Este, eventualmente, era realmente um colega (sem as aspas) e, fora da fábrica, poderia ser um grande amigo e até participar de greves e manifestações. Entretanto, dentro dá fábrica, ele era um escravo da produtividade. O seu objetivo era produzir o máximo possível e, assim, ele não se preocupava em fazer amigos, afinal de contas, local de trabalho não foi feito para conversar. Enquanto a maioria dos trabalhadores picava o cartão de ponto momentos antes da sirene tocar e começava a preparar o serviço a ser executado somente depois disto; o “caxias” chegava bem antes e, quando o sinal era dado, ele já estava pronto para ligar a máquina. Se ele tivesse algum serviço que não precisasse da máquina ele começava antes mesmo do horário. Se dependesse dele, provavelmente, ele ligaria a máquina antes do tempo2. Mas não confunda o “caxias” com o puxa-saco. O puxa-saco poderia ter um procedimento semelhante ao descrito acima, mas apenas se ele desconfiasse que o chefe estivesse vendo. Quando o chefe se ausentava, o comportamento do puxa-saco era semelhante ou até mais desleixado que os demais, enquanto que o “caxias” permanecia o mesmo. O que movia o “caxias” era uma moral rígida3, enquanto que o puxa-saco era movido pela ambição.
O “caxias” que tivesse uma produtividade razoável recebia do chefe o mesmo tratamento dispensado aos outros "colegas" úteis4. Isto servia para "mostrar" aos operários que o patrão estava disposto a tratar bem aqueles que se dedicassem ao serviço. Servia, também, para tentar cooptar o “caxias”. O “caxias” era, geralmente, uma pessoa despolitizada ou, no mínimo, ingênua. Ele, atingindo a meta de produtividade, não se dava conta de que ela era mantida em condições privilegiadas, se comparadas com as dos demais operários. Ele começava, então, a acreditar que o motivo de seu bom desempenho era sua dedicação e que o patrão, afinal de contas, era bom. Os outros funcionários só reclamavam porque não se dedicavam como ele. E, assim, o “caxias” estava corrompido, passando a ser um ótimo defensor do chefe.
Apesar de tudo isto, eu me sentia realizado profissionalmente, recebendo um salário razoável para o padrão de vida de minha família, pois, afinal de contas, eu era um “gola vermelha”5. Assim, eu vivia minha vida sem qualquer ambição profissional, tentando fazer o meu serviço da melhor forma possível e com uma única preocupação: a meta de produtividade de 110%.
Em 1985, participei de uma greve, acompanhando piquetes e acampando à porta da fábrica, o que me levou à demissão e me possibilitou verificar que é difícil conseguir emprego depois de ser demitido durante uma greve. Diante da situação, acabei decidindo estudar para o vestibular. Em 1986, ingressei no curso de graduação em Física da UFSCar e hoje sou professor de uma universidade. Hoje sou trabalhador de uma universidade. O que mudou? Bem, o sindicato é diferente, bem diferente do sindicato dos metalúrgicos da década de 80.
Hoje, na universidade, a produtividade também é cobrada e, da mesma forma que na fábrica não se levava em conta a qualidade das ferramentas e da máquina utilizada, na universidade não é considerada a área de pesquisa ou as condições de trabalho. Cobra-se produtividade mesmo com bibliotecas precárias, falta de técnicos administrativos ou de informática e falta de recursos para participação em congressos. Isto leva alguns a decidirem se tornar um dos "colegas" úteis ao patrão. Em troca, recebem computadores, verbas para pesquisa, bolsas de iniciação científica, etc, ou seja, condições de trabalho. Como na fábrica, existe também o “caxias” que, eventualmente, tornam-se aliados do poder.
Como na fábrica, é baixo o nível de politização dos professores universitários, o que é uma aberração compreensível, se levarmos em conta a atual mercantilização do ensino e esta cobrança por produtividade que leva um professor a ser muito especializado naquilo que faz, mas lhe sobrando pouco tempo para estar a par das notícias, participar de reuniões do sindicato ou se organizar para fazer alguma reivindicação. Essa verdadeira macdonaldização da universidade está gerando profissionais altamente especializados em suas áreas de pesquisa que, entretanto, não têm conhecimento da implicação social de suas pesquisas e as relações entre estas e outras áreas de conhecimento. É o fordismo  na universidade. Cada um só sabe apertar o seu parafuso. Um deve apertar o parafuso da matemática e outro o parafuso da história. Se eu sou matemático não preciso saber onde fica o parafuso da história e muito menos se ele é de rosca esquerda ou direita. Porém, este comportamento não ocorre por decisão do professor universitário. A produtividade é cobrada na universidade de uma forma tal que o professor não tem tempo para pensar. Algo totalmente decepcionante para mim, que imaginava, durante o curso de graduação, que na carreira acadêmica o pensar seria uma prioridade. O professor, após terminar um curso de doutorado, sobre o qual existe uma pressão enorme dos órgãos de fomento para que seja o mais breve possível, é obrigado a pôr em prática o que aprendeu, da mesma forma que um aluno do SENAI deve começar a produzir na fábrica após um curso de mecânica.
O sistema é imposto na universidade da mesma forma que é imposto na fábrica. Os professores que não são do “esquema”, geralmente, não conseguem apresentar a produtividade exigida. Os grandes pesquisadores não têm tempo para se dedicar aos seus alunos da graduação sendo que, alguns destes docentes, até gostariam que não existissem alunos na universidade. O professor que está sempre à disposição dos alunos e gasta um certo tempo na preparação de aulas não consegue produzir pesquisa suficiente para pontuar sua produtividade, já que este quesito é o de maior peso, principalmente porque a pesquisa, de uma forma geral, exige verbas, que estão mais próximas dos “colegas”. Assim, a universidade de hoje é a “Universidade Operacional” de Marilena Chauí6:

“Em suma, se por pesquisa entendermos a investigação de algo que nos lança na interrogação, que nos pede reflexão, crítica, enfrentamento com o instituído, descoberta, invenção e criação; se por pesquisa entendermos o trabalho do pensamento e da linguagem para pensar e dizer o que ainda não foi pensado nem dito; se por pesquisa entendermos uma visão compreensiva de totalidades e sínteses abertas que suscitam a interrogação e a busca; se por pesquisa entendermos uma ação civilizatória contra a barbárie social e política, então, é evidente que não há pesquisa na universidade operacional.”

Por isso, e por mais algumas coisas que o leitor pode imaginar, vejo muitas semelhanças entre a fábrica e a universidade. Mas também existem algumas diferenças. Na fábrica, a peça produzida deve estar dentro de um certo padrão de qualidade. Por mais que exista pressão para que o tempo de produção seja o menor possível, a qualidade não é dispensada. Isto é óbvio, pois uma peça defeituosa em uma máquina pode prejudicar seu funcionamento, bem como causar acidentes. Na universidade ou, de forma mais geral, no ensino em todos os níveis, o padrão de qualidade é algo bem flexível. Apesar de a universidade produzir muita pesquisa e extensão de qualidade, uma parte dos projetos são inúteis e realizados simplesmente para constar no currículo.
Finalmente, o salário é, ainda, um pouco melhor, mas o stress é muito pior. Eu não sou o mesmo da década de 80 e, por isso, não posso dizer que gostaria de voltar à fábrica, mas posso dizer que era mais feliz quando eu não percebia certas coisas. Talvez eu esteja apenas enfrentando o dilema do brâmane do conto de Voltaire7. Um consolo ao menos: permanecendo na universidade eu nunca me tornarei um sábio como o do conto.

1 - A ferramentaria de uma fábrica é o setor encarregado de construir as ferramentas, moldes e estampos utilizados na linha de produção.
2 - Algumas vezes, por brincadeira, ou por algum outro motivo, alguém ligava uma máquina e era possível ouvir os gritos e assobios de protestos pela quebra do silêncio que reinava antes do toque da sirene.
3 - Moral debatida no texto de Paul Lafargue, O Direito à Preguiça (1883). (clique aqui, para ler o texto)
4 - Nem todos com ótima produtividade recebiam tratamento especial da chefia. Um ou outro, apesar dela, não era bem visto pelo patrão, pois, apesar da eficiência no trabalho, não poderia ser considerado um "operário padrão", devido ao seu comportamento. Por exemplo, um trabalhador com boa produtividade, mas que reclamava das condições de trabalho ou se recusava a fazer hora-extra, certamente não era um exemplo a ser seguido.
5 - Na empresa em que trabalhava cada operário utilizava um avental que identificava seu  setor de trabalho pela cor da gola: gola vermelha era da ferramentaria, gola verde era da linha de produção, gola cinza era da manutenção, etc. Um “gola vermelha” recebia um dos melhores salários do setor produtivo e podia até utilizar um banheiro com vaso sanitário, o que era um privilégio já que a maioria dos operários da fábrica utilizam um banheiro que, no lugar da bacia convencional, possui apenas um local para posicionar os dois pés e agachar (bacia turca). 
6 – CHAUÍ, Marilena (1999). A Universidade Operacional. Folha de S. Paulo, Caderno Mais, 9 de maio.
7 – Voltaire (1759). História de um Brâmane. Breves Contos II (link para o texto)
Rogério de Oliveira é Professor Universitário

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