quinta-feira, 11 de novembro de 2010

ACORDA AMOR

Leonel Paiva
Julinho da Adelaide (Chico Buarque de Holanda)

Acorda amor
Eu tive um pesadelo agora
Sonhei que tinha gente lá fora
Batendo no portão, que aflição
Era a dura, numa muito escura viatura
Minha nossa santa criatura
Chame, chame, chame lá
Chame, chame o ladrão, chame o ladrão

Acorda amor
Não é mais pesadelo nada
Tem gente já no vão de escada
Fazendo confusão, que aflição
São os homens
E eu aqui parado de pijama
Eu não gosto de passar vexame
Chame, chame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão

Se eu demorar uns meses
Convém, às vezes, você sofrer
Mas depois de um ano eu não vindo
Ponha a roupa de domingo
E pode me esquecer

Acorda amor
Que o bicho é brabo e não sossega
Se você corre o bicho pega
Se fica não sei não
Atenção
Não demora
Dia desses chega a sua hora
Não discura à toa não reclame
Clame, chame lá, chame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão, chame o ladrão
(Não esqueça a escova, o sabonete e o violão)

FUNERAL DE UM LAVRADOR

João Cabral de Melo Neto

Esta cova em que estás com palmos medida
É a conta menor que tiraste em vida
É de bom tamanho nem largo nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio
Não é cova grande, é cova medida
É a terra que querias ver dividida
É uma cova grande pra teu pouco defunto
Mas estás mais ancho que estavas no mundo
É uma cova grande pra teu defunto parco
Porém mais que no mundo te sentirás largo
É uma cova grande pra tua carne pouca
Mas a terra dada, não se abre a boca
É a conta menor que tiraste em vida
É a parte que te cabe deste latifúndio
É a terra que querias ver dividida
Estarás mais ancho que estavas no mundo

Frases e Citações

“Como já mencionei, se quiser tornar-se um professor de matemática, não basta aprender muita matemática. Adicionalmente é preciso aprender como se comportar, como se vestir de um modo apropriado, que tipos de questões podem ser levantadas, como encaixar (ou seja, como se adaptar), etc. Se mostrar demasiada independência e questionar o código da sua profissão com demasiada freqüência, o mais provável é ser excluído do sistema de privilégios.”
NOAM CHOMSKY em A Escola como Instrumento de  Controle e Coerção (clique aqui para ler o texto na íntegra)

“Em suma, se por pesquisa entendermos a investigação de algo que nos lança na interrogação, que nos pede reflexão, crítica, enfrentamento com o instituído, descoberta, invenção e criação; se por pesquisa entendermos o trabalho do pensamento e da linguagem para pensar e dizer o que ainda não foi pensado nem dito; se por pesquisa entendermos uma visão compreensiva de totalidades e sínteses abertas que suscitam a interrogação e a busca; se por pesquisa entendermos uma ação civilizatória contra a barbárie social e política, então, é evidente que não há pesquisa na universidade operacional.”
MARILENA CHAUÍ no artigo Universidade Operacional (este artigo pode ser encontrado na internet)

“A doutrinação é necessária porque as escolas são, de um modo geral, concebidas para apoiar os interesses do segmento dominante da sociedade, das pessoas detentoras da riqueza e do poder. Numa fase inicial da educação, as pessoas são socializadas de modo a compreenderem a necessidade de apoiar a estrutura do poder, com as corporações em primeiro plano – a classe empresarial.”
NOAM CHOMSKY em A Escola como Instrumento de  Controle e Coerção (clique aqui para ler o texto na íntegra)

“Uma das características da esquerda é, e sempre foi, a de acreditar que o homem é perfectível, pode ser aperfeiçoado. Que o homem não é ruim por natureza, que é possível que socialmente ele possa viver de maneira harmônica, estável. A direita, por sua vez, é ruim mesmo. Faz com que o homem só pense em si, defenda seu interesse, por mais mesquinho que seja, acima de qualquer outra coisa. Essa é a verdadeira lei do mundo: primeiro o meu, o resto que se dane.”
JOÃO UBALDO RIBEIRO

“É sempre fácil obedecer quando se sonha comandar.”
JEAN PAUL SARTRE

“Os homens nascem ignorantes, mas são necessários anos de escolaridade para torná-los estúpidos.”
GEORGE BERNARD SHAW

“Quem mata um homem é chamado de assassino, quem mata milhares, é chamado de herói.”
CHARLES CHAPLIN

“Se tremes diante de qualquer injustiça, estejas onde for, então somos companheiros”
CHE GUEVARA

“Os oprimidos, contudo, acomodados e adaptados, “imersos” na própria engrenagem da estrutura dominadora, temem a liberdade, enquanto não se sentem capazes de correr o risco de assumi-la. E a temem, também, na medida em que, lutar por ela, significa uma ameaça, não só aos que a usam para oprimir, como seus “proprietários” exclusivos, mas aos companheiros oprimidos, que se assustam com maiores repressões.”
PAULO FREIRE no livro Pedagogia do Oprimido

“Mas quase sempre, durante a fase inicial do combate, em lugar de lutar pela liberdade, os oprimidos tendem a converter-se eles mesmos em opressores ou em “subopressores”. A própria estrutura de seu pensamento viu-se condicionada pelas contradições da situação existencial concreta que os manipulou. Seu ideal é serem homens, mas, para eles, serem homens é serem opressores. Este é seu modelo de humanidade.”
PAULO FREIRE no livro Conscientização - Teoria e Prática da Libertação -
Uma Introdução ao Pensamento de Paulo Freire

“É perigoso ter razão em assuntos sobre os quais as autoridades estabelecidas estão erradas.”
VOLTAIRE

“Desejo, também, que você tenha dinheiro, porque é preciso ser prático. E que pelo menos uma vez por ano coloque um pouco dele na sua frente e diga "Isso é meu", só para que fique bem claro quem é o dono de quem.”
VICTOR HUGO

“Melhor do que roubar bancos é fundar um.”
BERTOLD BRECHT

“O capital privado tende a concentrar-se em poucas mãos, em parte por causa da concorrência entre os capitalistas e em parte porque o desenvolvimento tecnológico e a crescente divisão do trabalho encorajam a formação de unidades de produção maiores à custa de outras mais pequenas. O resultado destes desenvolvimentos é uma oligarquia de capital privado cujo enorme poder não pode ser eficazmente controlado mesmo por uma sociedade política democraticamente organizada. Isto é verdade, uma vez que os membros dos órgãos legislativos são escolhidos pelos partidos políticos, largamente financiados ou influenciados pelos capitalistas privados que, para todos os efeitos práticos, separam o eleitorado da legislatura. A conseqüência é que os representantes do povo não protegem suficientemente os interesses das secções sub-privilegidas da população. Além disso, nas condições existentes, os capitalistas privados controlam inevitavelmente, direta ou indiretamente, as principais fontes de informação (imprensa, rádio, educação). É assim extremamente difícil e mesmo, na maior parte dos casos, completamente impossível, para o cidadão comum, chegar a conclusões objetivas e utilizar inteligentemente os seus direitos políticos.”
ALBERT EINSTEIN em Porquê o Socialismo? (clique aqui para ler o texto na íntegra)


TRANSGÊNICOS

Mieceslau Kudlavicz

Não sou estudioso nem pesquisador do assunto, mas como agente da Comissão Pastoral da Terra tenho participado de algumas discussões e estudos promovidos por instituições comprometidas com a luta dos camponeses e das camponesas, bem como tenho lido textos que versam sobre os prós e contras dos transgênicos e acompanho pela imprensa as notícias divulgadas sobre a polêmica em torno do assunto, principalmente no momento em que se inicia o período do plantio da soja. É permitido ou não é permitido o seu plantio. Que restrições legais são impostas para preservar a não contaminação do meio ambiente e tantas outras questões vão sendo debatidas pela mídia.
Posto isso, a presente reflexão objetiva levantar questões sobre os transgênicos, pouco divulgadas nos meios de comunicação social visto que a mídia dá ênfase maior à tecnologia utilizada pela engenharia Genética como avanço positivo da ciência o que não pode ser negado. É real e verdadeiro. No entanto precisamos afirmar de forma muito evidente a quem interessa esta tecnologia aqui no Brasil e a serviço de quem estará sendo disponibilizada.
Professora Eliane Tomiase Paulino em sua Palestra do dia 30 de maio de 2005 encerrando o Ciclo de Palestras promovido pela AGB de Três Lagoas, discorrendo sobre o tema “O Fazer Metodológico em Geografia” afirmava que “a ciência não é neutra, não é intocável e não é dona da Verdade”. Em segundo lugar, questionar informações que são veiculadas pelos órgãos da imprensa nacional relacionados aos benefícios ambiental, econômico e social, decorrentes do uso dos transgênicos.
Há uma diferença radical entre as técnicas utilizadas pela engenharia genética manipuladas pelo ser humano e as de melhoramento genético tradicional que a natureza e os agricultores vem realizando há milhares de anos. Os mecanismos de melhoramento genético tradicional somente são possíveis combinando material genético da mesma espécie ou de espécies muito próximas. Por exemplo, é possível o cruzamento do milho comum com o milho-pipoca e nunca do milho com a abobrinha ou com a beterraba. Muito menos o cruzamento do milho com o peixe ou com o sapo que são de reinos diferentes. Porém a engenharia genética ou a biotecnologia atualmente realizam tais modificações com a maior facilidade.
Há estudos realizados por pesquisadores da Universidade de Nebraska, do Centro de Ciência e Política Ambiental do Noroeste de Idaho e do Departamento de Entomologia da Universidade do Estado de Ohio, todos dos Estados Unidos, divulgados em 2001, que confirmam que a produtividade da soja transgênica foi de 2 a 8% menor do que a das variedades convencionais. Estes dados também revelam que é muito improvável que da simples mutação genética decorram significativos aumentos de produtividade. Para se atingir este objetivo há necessidade de se levar em consideração um conjunto de outros fatores que a planta necessita para germinar e se desenvolver.
Quanto à suposta redução nos custos de produção baseada na redução do uso de agrotóxicos, pelo menos com relação ao plantio da soja transgênica e do milho Bt, existem estudos que apontam na direção oposta, uma vez que a diminuição na aplicação de agrotóxicos fica em torno de 2% menor (quando não é maior o seu uso), enquanto que o preço da semente transgênica é até 80% mais cara que as sementes convencionais, como foi divulgado pelo Jornal “Valor Econômico” de 10/08/2005. Segundo informava o jornal, o preço das sementes transgênicas oscilavam entre R$2,00 e R$2,24, enquanto que as convencionais saiam entre R$1,20 e R$1,50. Acrescente-se o agravante dos royalties cobrados pela Monsanto por ter a propriedade intelectual da tecnologia da semente modificada no valor de R$0,88 por quilo de semente certificada. Estes dados confirmam que atualmente o cultivo da soja transgênica não diminui os custos de produção como muitas vezes é propagado, inclusive pelos meios de comunicação social.
É importante salientar ainda que o fato da soja geneticamente modificada ser resistente a herbicidas não é prova suficiente de que haja redução no uso de agrotóxicos. Segundo o Departamento de Agricultura do Governo Americano a soja transgênica requer em média 11% mais agrotóxicos para controlar o mato do que a semente convencional. Bem como não podemos menosprezar a questão de que o uso intensivo de um só herbicida faz aumentar a resistência do mato ao agrotóxico, como divulgado por estudiosos dos Estados Unidos.  Miguel Altieri (Universidade da Califórnia, Berkley) e Peter Rosset demonstram que esta probabilidade é muito real:
“As plantas transgências que produzem seu próprio inseticida seguem muito estreitamente o paradigma dos inseticidas, que por si só falham muito rapidamente devido à resistência que as pragas adquirem. No lugar do falido modelo “uma praga - um inseticida”, a engenharia genética enfatiza uma aproximação ao modelo “uma praga - um gene”, e já foi provado exaustivamente em laboratório que as espécies praga se adaptam e adquirem resistência ao inseticida presente na planta muito rapidamente” (Alstad e Andow, 1995).
 Por outro lado não podemos ignorar que, devido às sementes modificadas serem resistentes a herbicidas e/ou inseticidas, os agricultores aumentem a dosagem destes produtos químicos na hora da aplicação por sua conta e risco por não terem nenhum acompanhamento de assistência técnica privada ou de órgão governamental.
Finalmente faço a abordagem da última questão que é, no meu entendimento, uma das mais graves em relação às sementes geneticamente modificadas e à classe camponesa: a questão da patente ou propriedade intelectual. A Monsanto exige a assinatura de um contrato por meio do qual o agricultor se compromete a pagar os royalties e fica proibido de replantá-las no ano seguinte tornando-o novamente dependente da compra das sementes da Monsanto e da assinatura de um novo contrato. Não permitindo a prática de guardar as sementes que sempre foi uma prática da agricultura camponesa que é de produzir a sua própria semente, pois as sementes são patrimônio da humanidade. Com que direito uma empresa, utilizando-se de descobertas e conhecimentos que foram sendo adquiridos e acumulados durante milhares de anos, hoje reivindique como de propriedade intelectual uma semente que está sendo cultivada há anos pelo simples fato de ter manipulado a alteração de uma característica genética, mas que continuou sendo semente de soja. A Monsanto realizou as modificações genéticas na soja porque outras pessoas produziram outros conhecimentos e realizaram várias descobertas que possibilitaram que a Monsanto produzisse a soja transgênica. O conhecimento é socialmente construído. Não é produto de uma pessoa. É uma construção milenar.
Setembro de 2005
Mieceslau Kudlavicz é acadêmico da UFMS de Três Lagoas e agente da Comissão Pastoral da Terra

DA FÁBRICA PARA A UNIVERSIDADE

Rogério de Oliveira

  Mas, refletindo bem, parece uma insensatez preferir a razão à felicidade.
Voltaire - A História de um Brâmane

No início da década de 80, eu era filiado ao sindicato dos metalúrgicos, trabalhando na ferramentaria1 de uma multinacional.
Lembro-me que cada peça a ser trabalhada era acompanhada de um cartão, que indicava o tempo previsto para execução do serviço. No final de cada mês, eu deveria somar os tempos previstos das peças em que trabalhei e, comparando com a carga horária do mês, deveria atingir a meta de 110% de produtividade. Na época ficava me questionando: por que 110%? Se os engenheiros achassem que cada peça poderia ser concluída em menor tempo, então por que não diminuíam o tempo previsto, de forma a exigir apenas 100% de produtividade? Hoje eu arrisco uma resposta: o objetivo da empresa era obrigar cada funcionário a trabalhar sob pressão. O objetivo era fazer com que cada funcionário tivesse consciência de que não bastaria fazer o normal; ele teria que se superar.
Assim, a empresa fazia com que seus operários trabalhassem sempre no limite e, portanto, praticamente ninguém conseguia ser um bom trabalhador (segundo critérios estabelecidos pela própria empresa). Alguns trabalhadores atingiam a meta, mas, para isso, abriam mão da segurança: não utilizavam equipamentos obrigatórios e forçavam a máquina, correndo risco de acidentes. Ou seja, a grande maioria dos operários era criticável. Se um deles era bom em um aspecto, provavelmente seria ruim em algum outro e, portanto, ele sempre estaria “devendo” ao patrão.
Assim, a meta de 110% era difícil de ser alcançada, porém, alguns poucos a atingiam, e eram utilizados como exemplo pela empresa, no velho estilo “operário padrão”. Serviam para mostrar que era possível atingir a meta. Não era levada em conta a condição de trabalho, como qualidade da máquina ou ferramentas, ou se o trabalhador era um bom companheiro de trabalho ou se auxiliava colegas novatos.
Lembro-me de que alguns “colegas” eram úteis ao patrão e, geralmente, eram alguns destes que atingiam a meta de produtividade. Vou classificar estes “colegas” em três categorias: puxa-saco, dedo-duro e pelego. O puxa-saco era aquele indivíduo capaz de se humilhar para agradar o chefe e, apesar de não ser considerado um colega confiável, não era necessariamente desleal. O dedo-duro era aquele sujeito que todos sabiam ser um informante do chefe e, quando ele chegava, todos se policiavam. O pelego era o “amigo”, o “companheiro” que algumas vezes tentava convencer os outros de que o patrão era bom ou tentava amenizar algumas atitudes do chefe, mas, eventualmente, apoiava reivindicações e reclamações da maioria para ganhar a confiança dos colegas. Entretanto, o pelego não passava de um “agente” infiltrado. Assim, os pelegos andavam pela fábrica, mas ninguém sabia, com certeza, quem eram eles. Um pelego, quando desmascarado, geralmente tornava-se um dedo-duro.  
Alguns destes colegas, úteis ao patrão, até conseguiam alguma promoção e algum salário adicional como recompensa. A maioria, porém, recebia o mesmo salário. A recompensa, geralmente, era melhor condição de trabalho, como uma boa máquina e ferramentas novas (o que era importante para se atingir a meta de produtividade) ou o local mais agradável do setor. Estes colegas podiam, ainda, ser dispensados de horas-extras (se quisessem), cometer algumas irregularidades sem a punição dada aos demais trabalhadores ou serem dispensados da produtividade de 110%, já que não era pública a produtividade de cada um.
Existia um outro tipo de colega que também era útil ao patrão: era o “caxias”. Este, eventualmente, era realmente um colega (sem as aspas) e, fora da fábrica, poderia ser um grande amigo e até participar de greves e manifestações. Entretanto, dentro dá fábrica, ele era um escravo da produtividade. O seu objetivo era produzir o máximo possível e, assim, ele não se preocupava em fazer amigos, afinal de contas, local de trabalho não foi feito para conversar. Enquanto a maioria dos trabalhadores picava o cartão de ponto momentos antes da sirene tocar e começava a preparar o serviço a ser executado somente depois disto; o “caxias” chegava bem antes e, quando o sinal era dado, ele já estava pronto para ligar a máquina. Se ele tivesse algum serviço que não precisasse da máquina ele começava antes mesmo do horário. Se dependesse dele, provavelmente, ele ligaria a máquina antes do tempo2. Mas não confunda o “caxias” com o puxa-saco. O puxa-saco poderia ter um procedimento semelhante ao descrito acima, mas apenas se ele desconfiasse que o chefe estivesse vendo. Quando o chefe se ausentava, o comportamento do puxa-saco era semelhante ou até mais desleixado que os demais, enquanto que o “caxias” permanecia o mesmo. O que movia o “caxias” era uma moral rígida3, enquanto que o puxa-saco era movido pela ambição.
O “caxias” que tivesse uma produtividade razoável recebia do chefe o mesmo tratamento dispensado aos outros "colegas" úteis4. Isto servia para "mostrar" aos operários que o patrão estava disposto a tratar bem aqueles que se dedicassem ao serviço. Servia, também, para tentar cooptar o “caxias”. O “caxias” era, geralmente, uma pessoa despolitizada ou, no mínimo, ingênua. Ele, atingindo a meta de produtividade, não se dava conta de que ela era mantida em condições privilegiadas, se comparadas com as dos demais operários. Ele começava, então, a acreditar que o motivo de seu bom desempenho era sua dedicação e que o patrão, afinal de contas, era bom. Os outros funcionários só reclamavam porque não se dedicavam como ele. E, assim, o “caxias” estava corrompido, passando a ser um ótimo defensor do chefe.
Apesar de tudo isto, eu me sentia realizado profissionalmente, recebendo um salário razoável para o padrão de vida de minha família, pois, afinal de contas, eu era um “gola vermelha”5. Assim, eu vivia minha vida sem qualquer ambição profissional, tentando fazer o meu serviço da melhor forma possível e com uma única preocupação: a meta de produtividade de 110%.
Em 1985, participei de uma greve, acompanhando piquetes e acampando à porta da fábrica, o que me levou à demissão e me possibilitou verificar que é difícil conseguir emprego depois de ser demitido durante uma greve. Diante da situação, acabei decidindo estudar para o vestibular. Em 1986, ingressei no curso de graduação em Física da UFSCar e hoje sou professor de uma universidade. Hoje sou trabalhador de uma universidade. O que mudou? Bem, o sindicato é diferente, bem diferente do sindicato dos metalúrgicos da década de 80.
Hoje, na universidade, a produtividade também é cobrada e, da mesma forma que na fábrica não se levava em conta a qualidade das ferramentas e da máquina utilizada, na universidade não é considerada a área de pesquisa ou as condições de trabalho. Cobra-se produtividade mesmo com bibliotecas precárias, falta de técnicos administrativos ou de informática e falta de recursos para participação em congressos. Isto leva alguns a decidirem se tornar um dos "colegas" úteis ao patrão. Em troca, recebem computadores, verbas para pesquisa, bolsas de iniciação científica, etc, ou seja, condições de trabalho. Como na fábrica, existe também o “caxias” que, eventualmente, tornam-se aliados do poder.
Como na fábrica, é baixo o nível de politização dos professores universitários, o que é uma aberração compreensível, se levarmos em conta a atual mercantilização do ensino e esta cobrança por produtividade que leva um professor a ser muito especializado naquilo que faz, mas lhe sobrando pouco tempo para estar a par das notícias, participar de reuniões do sindicato ou se organizar para fazer alguma reivindicação. Essa verdadeira macdonaldização da universidade está gerando profissionais altamente especializados em suas áreas de pesquisa que, entretanto, não têm conhecimento da implicação social de suas pesquisas e as relações entre estas e outras áreas de conhecimento. É o fordismo  na universidade. Cada um só sabe apertar o seu parafuso. Um deve apertar o parafuso da matemática e outro o parafuso da história. Se eu sou matemático não preciso saber onde fica o parafuso da história e muito menos se ele é de rosca esquerda ou direita. Porém, este comportamento não ocorre por decisão do professor universitário. A produtividade é cobrada na universidade de uma forma tal que o professor não tem tempo para pensar. Algo totalmente decepcionante para mim, que imaginava, durante o curso de graduação, que na carreira acadêmica o pensar seria uma prioridade. O professor, após terminar um curso de doutorado, sobre o qual existe uma pressão enorme dos órgãos de fomento para que seja o mais breve possível, é obrigado a pôr em prática o que aprendeu, da mesma forma que um aluno do SENAI deve começar a produzir na fábrica após um curso de mecânica.
O sistema é imposto na universidade da mesma forma que é imposto na fábrica. Os professores que não são do “esquema”, geralmente, não conseguem apresentar a produtividade exigida. Os grandes pesquisadores não têm tempo para se dedicar aos seus alunos da graduação sendo que, alguns destes docentes, até gostariam que não existissem alunos na universidade. O professor que está sempre à disposição dos alunos e gasta um certo tempo na preparação de aulas não consegue produzir pesquisa suficiente para pontuar sua produtividade, já que este quesito é o de maior peso, principalmente porque a pesquisa, de uma forma geral, exige verbas, que estão mais próximas dos “colegas”. Assim, a universidade de hoje é a “Universidade Operacional” de Marilena Chauí6:

“Em suma, se por pesquisa entendermos a investigação de algo que nos lança na interrogação, que nos pede reflexão, crítica, enfrentamento com o instituído, descoberta, invenção e criação; se por pesquisa entendermos o trabalho do pensamento e da linguagem para pensar e dizer o que ainda não foi pensado nem dito; se por pesquisa entendermos uma visão compreensiva de totalidades e sínteses abertas que suscitam a interrogação e a busca; se por pesquisa entendermos uma ação civilizatória contra a barbárie social e política, então, é evidente que não há pesquisa na universidade operacional.”

Por isso, e por mais algumas coisas que o leitor pode imaginar, vejo muitas semelhanças entre a fábrica e a universidade. Mas também existem algumas diferenças. Na fábrica, a peça produzida deve estar dentro de um certo padrão de qualidade. Por mais que exista pressão para que o tempo de produção seja o menor possível, a qualidade não é dispensada. Isto é óbvio, pois uma peça defeituosa em uma máquina pode prejudicar seu funcionamento, bem como causar acidentes. Na universidade ou, de forma mais geral, no ensino em todos os níveis, o padrão de qualidade é algo bem flexível. Apesar de a universidade produzir muita pesquisa e extensão de qualidade, uma parte dos projetos são inúteis e realizados simplesmente para constar no currículo.
Finalmente, o salário é, ainda, um pouco melhor, mas o stress é muito pior. Eu não sou o mesmo da década de 80 e, por isso, não posso dizer que gostaria de voltar à fábrica, mas posso dizer que era mais feliz quando eu não percebia certas coisas. Talvez eu esteja apenas enfrentando o dilema do brâmane do conto de Voltaire7. Um consolo ao menos: permanecendo na universidade eu nunca me tornarei um sábio como o do conto.

1 - A ferramentaria de uma fábrica é o setor encarregado de construir as ferramentas, moldes e estampos utilizados na linha de produção.
2 - Algumas vezes, por brincadeira, ou por algum outro motivo, alguém ligava uma máquina e era possível ouvir os gritos e assobios de protestos pela quebra do silêncio que reinava antes do toque da sirene.
3 - Moral debatida no texto de Paul Lafargue, O Direito à Preguiça (1883). (clique aqui, para ler o texto)
4 - Nem todos com ótima produtividade recebiam tratamento especial da chefia. Um ou outro, apesar dela, não era bem visto pelo patrão, pois, apesar da eficiência no trabalho, não poderia ser considerado um "operário padrão", devido ao seu comportamento. Por exemplo, um trabalhador com boa produtividade, mas que reclamava das condições de trabalho ou se recusava a fazer hora-extra, certamente não era um exemplo a ser seguido.
5 - Na empresa em que trabalhava cada operário utilizava um avental que identificava seu  setor de trabalho pela cor da gola: gola vermelha era da ferramentaria, gola verde era da linha de produção, gola cinza era da manutenção, etc. Um “gola vermelha” recebia um dos melhores salários do setor produtivo e podia até utilizar um banheiro com vaso sanitário, o que era um privilégio já que a maioria dos operários da fábrica utilizam um banheiro que, no lugar da bacia convencional, possui apenas um local para posicionar os dois pés e agachar (bacia turca). 
6 – CHAUÍ, Marilena (1999). A Universidade Operacional. Folha de S. Paulo, Caderno Mais, 9 de maio.
7 – Voltaire (1759). História de um Brâmane. Breves Contos II (link para o texto)
Rogério de Oliveira é Professor Universitário

A ESCOLA COMO INSTRUMENTO DE CONTROLE E COERÇÃO

Noam Chomsky
Entrevista a Noam Chomsky por Donaldo Macedo (junho de 1999)
Noam Chomsky é Professor do Massachusetts Institute of Technology
O entrevistador, Donaldo Macedo, é da Universidade de Massachusetts


Donaldo Macedo – Há alguns anos, fiquei intrigado com um episódio ocorrido na Boston Latin School. David Spritzler, um aluno de doze anos, sofreu um processo disciplinar por ter recusado a recitar o Juramento de Fidelidade (Pledge of Allegiance)1, juramento que ele considerava "uma exortação hipócrita ao patrioteirismo" uma vez que não existe "liberdade e justiça para todos". O que lhe quero perguntar é por que é que um rapaz de doze anos consegue perceber a hipocrisia do juramento de fidelidade, e o seu professor e os administradores da escola não? Eu acho desconcertante que professores, que pela própria natureza da sua função se deveriam considerar intelectuais, não sejam capazes ou se recusem conscientemente a ver o que é tão óbvio para alguém tão jovem.
Noam Chomsky – Isso não é assim tão difícil de compreender. O que acabou de descrever é um sinal do grau de enraizamento da doutrinação nas nossas escolas, que leva a que uma pessoa instruída não seja capaz de entender idéias elementares capazes de serem compreendidas por qualquer criança de doze anos.
Donaldo Macedo – Acho desconcertante que um professor altamente instruído e um diretor de uma escola estejam dispostos a sacrificar o conteúdo do Juramento de Fidelidade para imporem obediência, ao exigirem que um aluno recite o Juramento de Fidelidade.
Noam Chomsky – Não considero isso nada desconcertante. Na realidade, o que aconteceu com David Spritzler é o que se espera das escolas, que são instituições dedicadas à doutrinação e à imposição de obediência. Longe de criarem pensadores independentes, ao longo da história as escolas sempre tiveram um papel institucional num sistema de controle e coerção. E, uma vez convenientemente educado, o indivíduo foi socializado de um modo que dá suporte à estrutura de poder que, por seu lado, o recompensa generosamente.
Vejamos o exemplo de Harvard. Aí os estudantes não se limitam a aprender matemática. Aprendem também o que é esperado de um graduado de Harvard no que diz respeito ao seu comportamento e ao tipo de perguntas que nunca se devem fazer. Aprendem as sutilezas das recepções, as formas de se vestir mais adequadas e como falar com sotaque de Harvard.
Donaldo Macedo – E também de como se mover no seio de uma classe particular e descobrir as metas, os objetivos e os interesses da classe dominante.
Noam Chomsky – Sim. Neste caso existe uma diferença fundamental entre Harvard e o MIT. Apesar de se poder caracterizar o MIT seguramente como sendo mais de direita, é uma instituição muito mais aberta que Harvard. Existe um adágio sobre Cambridge que retrata essa diferença: Harvard treina pessoas para governar o mundo, o MIT treina as que o fazem funcionar. O resultado é que a preocupação de controle ideológico é muito menor no MIT, havendo mais espaço para o pensamento independente. A minha situação nessa instituição é prova do que acabei de dizer. Eu nunca senti qualquer interferência no meu trabalho ou ativismo político. Dito isto, eu não considero que o MIT seja um trampolim para o ativismo político. Ainda está subjugado a um papel institucional de evitar uma boa parte da verdade acerca do mundo e da sociedade. Caso contrário, se ensinasse a verdade, não sobreviveria muito tempo.
Como não ensinam a verdade sobre o mundo, as escolas têm que martelar na cabeça dos estudantes até lhes impingir a propaganda sobre a democracia. Se as escolas fossem realmente democráticas, não seria necessário bombardear os estudantes com banalidades acerca da democracia. Estes agiriam e comportar-se-iam de uma forma simplesmente democrática, e nós sabemos que isso não acontece. Habitualmente, quanto maior é a necessidade de falar sobre os ideais da democracia, menos democrático é o sistema.
DOUTRINAÇÃO DOS JOVENS
 Noam Chomsky – Este é um dado bem conhecido pelos políticos e por vezes estes nem sequer se esforçam por escondê-lo. A Comissão Trilateral2 referiu-se às escolas como "instituições" responsáveis pela "doutrinação dos jovens". A doutrinação é necessária porque as escolas são, de um modo geral, concebidas para apoiar os interesses do segmento dominante da sociedade, das pessoas detentoras da riqueza e do poder. Numa fase inicial da educação, as pessoas são socializadas de modo a compreenderem a necessidade de apoiar a estrutura do poder, com as corporações em primeiro plano – a classe empresarial. A lição aprendida na socialização através da educação é que se não se apoiar os interesses dos detentores da riqueza e do poder, não se sobrevive por muito tempo. É-se excluído do sistema ou marginalizado. E as escolas são bem sucedidas na "doutrinação da juventude" – para usar as palavras da Comissão Trilateral – ao operarem num enquadramento propagandístico que consegue distorcer ou reprimir idéias e informações indesejáveis.
Donaldo Macedo – Como é possível que esses intelectuais que operam num enquadramento propagandístico consigam escapar incólumes com a sua cumplicidade para com as falsidades que disseminam a serviço dos poderosos interesses?
Noam Chomsky – Eles não escapam nada. Na realidade, estão apenas a prestar um serviço que as instituições para as quais trabalham esperam deles. E eles, voluntariamente, talvez inconscientemente, preenchem os requisitos do sistema industrial. É como se contratasse um carpinteiro e, depois de ele concluir o trabalho para que foi contratado, lhe perguntasse como é que ele se tinha safado com aquilo. Ele fez o que dele se esperava.
Bem, os intelectuais prestam um serviço semelhante. Fazem o que deles é esperado ao oferecerem uma descrição razoavelmente exata da realidade que se adequa aos interesses das pessoas que detêm a riqueza e o poder – os donos das instituições a que chamamos escolas e, de fato, da sociedade de um modo geral.
Donaldo Macedo – É claro que historicamente os intelectuais têm tido um papel inglório de apoio ao sistema doutrinal. Dada a postura pouco honrosa que assumem, poderemos considerá-los intelectuais, no verdadeiro sentido da palavra? Você refere-se com alguma freqüência a alguns professores de Harvard como "comissários". Eu também considero o termo mais apropriado que intelectual, dada a sua cumplicidade com a estrutura de poder, e dos seus papéis funcionais de apoio a "valores civilizacionais" que em muitos casos deram origem a exatamente o oposto: miséria humana, genocídio, escravatura e exploração em massa das populações.
Noam Chomsky – Do ponto de vista histórico, tem sido quase exatamente esse o caso. Recuando no tempo até à época da Bíblia, os intelectuais que mais tarde foram chamados "falsos profetas" trabalhavam para os interesses específicos de quem estava no poder.
Sabemos que existiam intelectuais dissidentes naquela época, e que esses tinham uma visão alternativa do mundo. Foram mais tarde chamados "profetas" – uma tradução dúbia de um mundo obscuro. Esses intelectuais foram marginalizados, torturados ou exilados. As coisas não mudaram muito na nossa época. Os intelectuais dissidentes continuam marginalizados pela maioria das sociedades e, em lugares como El Salvador, são simplesmente chacinados.
Foi isso que aconteceu com arcebispo Romero e os seis intelectuais jesuítas executados por tropas de elite treinadas [nos EUA], armadas e suportadas pelos nossos impostos. Um jesuíta salvadorenho comentou acertadamente no seu diário que no seu país Václav Havel (antigo prisioneiro político que se tornou presidente da Tchecoslováquia), por exemplo, não teria sido preso; teria sido esquartejado e abandonado à beira da estrada. Václav Havel, que se tornou o dissidente preferido do Ocidente, recompensou generosamente os seus apoiadores no Ocidente ao dirigir-se ao Congresso dos EUA algumas semanas após o assassinato dos seis jesuítas em El Salvador. Em vez de demonstrar solidariedade para com os camaradas dissidentes em El Salvador, louvou e enalteceu o Congresso, a quem chamou de "defensores da liberdade". O escândalo é tão óbvio que não precisa de comentário.
Um simples teste mostrará como este escândalo é extraordinário. Consideremos, por exemplo, o seguinte caso imaginário: um comunista negro americano ir à (então) União Soviética, pouco tempo depois de seis eminentes intelectuais tchecos terem sido assassinados por forças de segurança treinadas e armadas pelos russos. Ele dirige-se à Duma, elogiando os deputados enquanto "defensores da liberdade". A reação dos intelectuais e políticos aqui nos Estados Unidos seria rápida e previsível. Ele seria denunciado por apoiar um regime assassino. Os intelectuais americanos deviam perguntar-se por que razão reagiram com tal êxtase ao incrível desempenho de Havel, que é bastante comparável a esta situação imaginária.
Quantos intelectuais americanos já leram alguma coisa sobre os intelectuais da América Central assassinados por exércitos sancionados pelos EUA? Ou ouvido falar de Dom Hélder Câmara – o bispo brasileiro defensor das causas dos pobres do Brasil? O fato de que a maioria deles teria dificuldade em dizer os nomes dos dissidentes das tiranias brutais da América Latina – e de outros locais – apoiados por nós, e cujas "forças da ordem" são treinadas por nós, proporciona uma visão interessante da nossa cultura.
Para além de uma educação intelectualmente domesticadora, os fatos inconvenientes ao sistema doutrinado são sumariamente ignorados. É como se não existissem. São simplesmente suprimidos.
Donaldo Macedo – Esta construção social do não ver caracteriza esses intelectuais, descritos por Paulo Freire como educadores que reclamam uma postura científica e que "poderiam tentar esconder-se no que [eles] consideram a neutralidade da investigação científica, indiferentes ao modo como as [suas] invenções são utilizadas, desinteressados até em considerar para quem ou para que interesses estão a trabalhar" 3. Segundo Freire, em nome da objetividade, esses intelectuais "poderiam tratar a sociedade em estudo como se [eles próprios] não fizessem parte dela. Na [sua] celebrada neutralidade, [eles poderiam] abordar esse mundo como se usassem luvas e máscaras' para não contaminarem nem serem contaminados por ela". Eu acrescentaria que esses intelectuais não só usam "luvas e máscaras", mas também viseiras, para evitarem ver o óbvio.
Noam Chomsky – Não sei se concordo com esse ataque e crítica pós-moderna à objetividade. A objetividade não é algo que possamos rejeitar. Pelo contrário, deveríamos trabalhar muito para abarcar na nossa procura da verdade.
Donaldo Macedo – Não discordo. A minha crítica da objetividade não pretende rejeitá-la. O que deve ser questionado é a capa de objetividade utilizada por muitos intelectuais para evitar incorporar nas suas análises fatores inconvenientes e que possam expor a sua cumplicidade na supressão da verdade ao serviço da ideologia dominante.
Noam Chomsky – Sim. A pretensão da objetividade enquanto meio de distorção e desinformação a serviço do sistema doutrinal deve ser firmemente condenada. Essa atitude intelectual é muito mais facilmente mantida nas ciências sociais, porque os constrangimentos impostos aos investigadores pelo mundo exterior são muito mais fracos.
A compreensão é muito mais superficial e os problemas a analisar são muito mais obscuros e complexos. O resultado é que é muito mais fácil ignorar simplesmente coisas que não se quer ouvir. Existe uma diferença marcada entre as ciências naturais e as ciências sociais.
Nas ciências naturais, os fatos da natureza não deixam o investigador ignorar com tanta facilidade coisas que entrem em conflito com crenças favorecidas e é mais difícil perpetuar erros. Uma vez que nas ciências naturais as experiências são replicadas, é mais fácil expor os erros. Existe uma disciplina interna que orienta as diligências intelectuais. Ainda assim, não existe uma garantia clara de que mesmo a mais séria pesquisa conduza à verdade.
Regressemos ao ponto inicial: as escolas evitam verdades importantes. É da responsabilidade intelectual dos professores – e de qualquer indivíduo honesto – procurar dizer a verdade. Isto não é, certamente, controverso. É um imperativo moral procurar e dizer a verdade, na medida das possibilidades, acerca de coisas relevantes, ao público certo.
PERDA DE TEMPO DIZER A VERDADE AO PODER
Noam Chomsky – É uma perda de tempo dizer a verdade ao poder, no sentido literal das palavras, e o esforço de o fazer pode freqüentemente ser uma forma de autocomplacência. A meu ver, é uma perda de tempo e um empreendimento inútil dizer a verdade a pessoas como Henry Kissinger ou o Presidente do Conselho de Administração da AT&T, ou outros que exerçam poder em instituições com políticas de coerção – a maioria deles já conhecem estas verdades. Gostaria de justificar o que acabei de dizer. Se e quando as pessoas que exercem o poder nas respectivas funções institucionais se dissociam do ambiente institucional e se tornam seres humanos, agentes morais, nessa altura podem juntar-se ao resto das pessoas. Mas não vale a pena dialogar com eles no seu papel de indivíduos detentores de poder. É um desperdício de tempo. Vale tanto a pena dizer a verdade ao poder quanto ao pior e mais criminoso dos tiranos, que também será um ser humano, independentemente de quão terríveis sejam as suas ações. Dizer a verdade ao poder não é uma vocação particularmente honrosa.
Deve-se procurar um público que interesse. Para os professores, esse público são os estudantes. Estes não devem ser vistos como uma mera audiência, mas como fazendo parte de uma comunidade de interesse partilhado, na qual esperamos poder participar de um modo construtivo. Não devemos falar para, mas com. Isso é algo que já se tornou uma segunda natureza em qualquer bom professor, e também o deveria ser em qualquer escritor ou intelectual. Um bom professor sabe que a melhor maneira de ajudar os alunos a aprender é deixá-los descobrir a verdade por eles próprios. Os estudantes não aprendem por mera transferência de conhecimento através da memorização mecânica e posterior regurgitação.
O verdadeiro conhecimento vem através da descoberta da verdade e não através da imposição de uma verdade oficial. Isso nunca conduz ao desenvolvimento do pensamento crítico e independente. Todos os professores têm a obrigação de ajudar os estudantes a descobrir a verdade e não suprimir informação e conhecimentos que possam ser embaraçosos para as pessoas ricas e poderosas que criam, concebem e fazem as políticas das escolas.
Vejamos mais de perto o que significa ensinar a verdade e as pessoas distinguirem mentiras de verdades. Eu acho que não é preciso mais do que bom senso, o mesmo bom senso que nos permite adotar uma posição crítica perante os sistemas de propaganda das nações que consideramos nossas inimigas. Já sugeri antes que os eminentes intelectuais estadunidenses não seriam capazes de nomear nenhum dissidente conhecido das tiranias da esfera do nosso controle, por exemplo, El Salvador. Contudo, esses mesmos intelectuais não teriam qualquer dificuldade em fornecer uma longa lista de dissidentes da antiga União Soviética. Também não teriam qualquer problema em distinguir mentiras da verdade e em reconhecer as distorções e perversões que são usadas para proteger a população da verdade nos regimes inimigos. As competências críticas que eles utilizam para desmascarar as falsidades propagadas nas nações a que chamam "hostis" desaparecem quando se trata de criticar o nosso próprio governo e as tiranias por nós suportadas. As classes instruídas têm essencialmente apoiado o aparelho de propaganda ao longo da história, e quando desvios da doutrina são reprimidos ou marginalizados, a máquina propagandística tem geralmente grande sucesso. Isso foi bem compreendido por Hitler e por Stalin, e até hoje tanto sociedades abertas como fechadas procuram e recompensam a cumplicidade da classe instruída.
A classe instruída tem sido denominada uma "classe especializada", um pequeno grupo de pessoas que analisam, executam, tomam decisões e gerem as coisas nos sistemas político, econômico e ideológico. A classe especializada é geralmente composta por uma pequena percentagem da população; eles têm de ser protegidos do grosso da população, a quem Walter Lippmann chamou de "rebanho desnorteado". Esta classe especializada leva a cabo as "funções executivas", o que significa que são eles que pensam, planejam e percebem os "interesses comuns", que para eles são os interesses da classe empresarial. A grande maioria das pessoas, o “rebanho desnorteado”, deve funcionar na nossa democracia como "espectadores", não como "participantes na ação", de acordo com as crenças liberais democráticas que Lippmann articula com clareza. Na nossa democracia, de vez em quando é permitido aos membros do "rebanho desnorteado" participar da aprovação de um líder através daquilo que chamamos "eleição". Mas, uma vez confirmado um ou outro membro da classe especializada, devem retirar-se e voltar a ser espectadores.
Quando o "rebanho desnorteado" tenta ser mais do que simples espectadores, quando as pessoas tentam tomar-se participantes nas ações democráticas, a classe especializada reage àquilo que chama "crise de democracia". E por isso que existiu tanto ódio entre as elites dos anos 1960, quando grupos de pessoas que historicamente sempre foram marginalizadas se começaram a organizar e a interferir com as políticas da classe especializada, em particular na guerra do Vietnam, mas também na política social interna.
Uma das formas de controlar o "rebanho desnorteado" é seguir a concepção da Comissão Trilateral das escolas enquanto instituições responsáveis pela "doutrinação dos jovens". Os membros do "rebanho desnorteado" devem ser profundamente doutrinados nos valores e interesses corporativos privados e controlados pelo estado. Aqueles que são bem sucedidos em instruir-se nos valores da ideologia dominante e que provam a sua lealdade ao sistema doutrinal podem tornar-se parte da classe especializada. O resto do "rebanho desnorteado" deve ser mantido na linha, longe de problemas e mantendo-se sempre, quando muito, espectadores da ação e distraídos das verdadeiras questões que interessam. A classe instruída considera-os demasiado estúpidos para gerirem os seus próprios assuntos, e por isso precisam da classe especializada para se assegurarem de que não terão a oportunidade de agir com base nos seus "equívocos". Segundo a classe especializada, os 70 por cento das pessoas que consideram que a Guerra do Vietnam foi moralmente errada devem ser protegidos dos seus "equívocos" ao oporem-se à guerra: eles devem acreditar na opinião oficial de que a Guerra do Vietnam foi apenas um erro.
Para proteger o "rebanho desnorteado" de si próprio e dos seus "equívocos", numa sociedade aberta a classe especializada precisa de se virar cada vez mais para a técnica da propaganda, para a qual se usa o eufemismo "relações públicas". Por outro lado, em estados totalitários o "rebanho desnorteado" é mantido no lugar por um martelo que paira sobre as suas cabeças, e se alguém se desvia, tem sua cabeça esmagada. Uma sociedade democrática não se pode apoiar na força bruta para controlar a população. Por isso, é preciso confiar mais na propaganda como forma de controlar a mente pública. A classe instruída toma-se indispensável na diligência de controle da mente e as escolas têm um papel importante neste processo.
Donaldo Macedo – As suas declarações sugerem, e eu concordo, que nas sociedades abertas a censura está, em grande parte, integrada no tecido do qual depende a propaganda e a sua tentativa de "controlar a mente pública". Porém, na minha perspectiva, a censura numa sociedade aberta difere substancialmente da forma de censura exercida em sociedades totalitárias. O que eu tenho observado nos Estados Unidos é que a censura não só se manifesta de um modo diferente, mas também que depende de uma forma de autocensura. Quais são os papéis dos meios de comunicação social e da educação neste processo?
Noam Chomsky – Aquilo que você chamou de autocensura começa em muito tenra idade, através de um processo de socialização que é também uma forma de doutrinação que funciona contra o pensamento independente, em favor da obediência. As escolas funcionam como um mecanismo para essa socialização. O objetivo é evitar que as pessoas façam as perguntas que interessam acerca de questões importantes que as afetam diretamente, a elas e a outros. Nas escolas não se aprendem apenas conteúdos. Como já mencionei, se quiser tornar-se um professor de matemática, não basta aprender muita matemática.
Adicionalmente é preciso aprender como se comportar, como se vestir de um modo apropriado, que tipos de questões podem ser levantadas, como encaixar (ou seja, como se adaptar), etc. Se mostrar demasiada independência e questionar o código da sua profissão com demasiada freqüência, o mais provável é ser excluído do sistema de privilégios.
Assim, rapidamente aprende que, para ter êxito, tem que servir os interesses do sistema doutrinal. Tem que ficar calado e instilar nos seus estudantes as crenças e doutrinas que servirão os interesses daqueles que detêm o verdadeiro poder. A classe empresarial e os seus interesses privados são representados pelo elo estado-empresa. Mas as escolas estão longe de ser o único instrumento de doutrinação. Outras instituições se conjugam para reforçar o processo de doutrinação. Vejamos aquilo que nos impingem pela televisão.
Pedem-nos para assistirmos a um conjunto de programas vazios, concebidos como entretenimento, mas desenhados para desviar a atenção das pessoas dos seus verdadeiros problemas ou de identificarem as fontes dos seus problemas. Assim, esses programas vazios socializam o espectador, para que se torne num consumidor passivo. Uma das formas de gerir uma vida frustrada é comprar cada vez mais coisas. Os programas exploram as necessidades emocionais das pessoas e mantêm-nas desligadas das necessidades dos outros. À medida que os espaços públicos se desintegram, as escolas e os poucos espaços públicos que restam trabalham para tornar as pessoas boas consumidoras.
Donaldo Macedo: Isso ajusta - se à super glorificação do individualismo.
Noam Chomsky – Não concordo. Não o vejo como uma forma de individualismo. O individualismo, no seu melhor, exige alguma forma de responsabilidade pelas próprias ações. Esta forma vazia de entretenimento encoraja as pessoas a submeterem-se e deixarem-se guiar essencialmente pela emoção e pelo impulso. O impulso é consumir mais, ser um bom consumidor. Nesse sentido, os meios de comunicação social, as escolas e a cultura popular dividem-se entre aqueles que possuem racionalidade, e são os que planejam e tomam as decisões na sociedade, e o resto das pessoas. E para terem sucesso, aqueles que possuem racionalidade e se juntam à classe especializada têm que criar "ilusões necessárias" e "maniqueísmos emocionalmente potentes", de acordo com as palavras de Reinhold Niehbur, para proteger o "rebanho desnorteado" – o simplório ingênuo – da importunação da complexidade dos problemas reais, que de qualquer modo não conseguiriam resolver. O objetivo é manter as pessoas isoladas das verdadeiras questões e umas das outras. Qualquer tentativa de organizar ou estabelecer ligações com o coletivo tem de ser esmagada. Tal como nos estados totalitários, a censura é muito real nas sociedades abertas, apesar de assumir formas diferentes. Perguntas que são ofensivas ou embaraçosas para o sistema doutrinal são interditadas. As informações inconvenientes são suprimidas. Não é preciso ir muito longe para se chegar a esta conclusão, basta analisar de uma forma honesta aquilo que é noticiado nos meios de comunicação social e aquilo que é deixado de fora; tentar entender honestamente qual a informação permitida nas escolas e qual a proibida. Qualquer pessoa com uma inteligência média consegue perceber como os meios de comunicação social manipulam e censuram a informação que consideram inconveniente. Pode dar algum trabalho descobrir as distorções e a ocultação da informação. Mas a única coisa que é preciso é o desejo de conhecer a verdade.
Não existe razão para os intelectuais não conseguirem tomar a mesma posição perante os nossos protetorados na América Latina que tomam perante os domínios inimigos. Para isso basta a vontade de utilizar a mesma inteligência e bom senso que utilizam ao analisar e dissecar as atrocidades cometidas pelos nossos inimigos. Se as escolas estivessem ao serviço do público em geral, estariam fornecendo às pessoas técnicas de autodefesa, mas isso significaria ensinar a verdade acerca do mundo e da sociedade. Iriam dedicar-se com mais energia e aplicação exatamente ao tipo de coisas que estamos discutindo, de modo que as pessoas que cresceram numa sociedade aberta e democrática desenvolveriam técnicas de autodefesa, não só contra o aparelho propagandístico das sociedades totalitárias controladas pelo Estado, mas também contra o sistema privatizado de propaganda, que inclui as escolas, os meios de comunicação social, a imprensa que determina o que está na ordem do dia e as revistas intelectuais, que essencialmente controlam o empreendimento educativo. Aqueles que exercem o controle sobre o aparelho educativo deveriam ser referidos como uma classe de "comissários". Comissários são os intelectuais que trabalham em primeira linha para a reprodução, legitimação e manutenção da ordem social dominante, da qual colhem benefícios. Os verdadeiros intelectuais têm a obrigação de buscar e dizer a verdade acerca de coisas que são importantes, coisas significativas. Este ponto não se perdeu junto dos intelectuais do Ocidente, que não têm qualquer problema em aplicar princípios morais elementares em casos que envolvam inimigos oficiais.
Donaldo Macedo: Isso é uma forma de moralismo seletivo. Participar deste moralismo seletivo também fornece a esses comissários a base racional para justificar a sua cumplicidade com aquilo a que Theodor Adorno chamou "recusa teimosa de ver". Eu vivi em duas ditaduras muito diferentes, a de António Salazar, em Portugal, e a de Francisco Franco, na Espanha, e a censura nesses regimes totalitários era crua, inequívoca e policiada. A experiência que tenho da censura na democracia dos EUA é de que esta é muito mais difusa e freqüentemente exercida de uma forma subliminar ou através dos colegas (incluindo os estudantes) no contexto do trabalho.
Por falar em democracia, não é irônico que nos Estados Unidos – um país que se considera a primeira e mais democrática sociedade do Primeiro Mundo – as escolas continuem a ser extremamente antidemocráticas? Elas continuam antidemocráticas não só nas suas estruturas administrativas (por exemplo, os diretores são nomeados e não eleitos), mas também enquanto locais que reproduzem a ideologia dominante, que por seu lado desencoraja o pensamento crítico e independente. Dada a natureza antidemocrática das escolas, como pode a educação estimular o pensamento crítico em termos de criatividade, curiosidade e necessidades dos estudantes?
Noam Chomsky – Existiam alternativas ao atual sistema escolar antidemocrático que acabou de mencionar. Por exemplo, eu tive a sorte de estudar numa escola baseada em ideais democráticos, onde a influência das idéias de John Dewey se sentiam fortemente e onde as crianças eram encorajadas a estudar e investigar enquanto processo de descoberta da verdade por elas próprias. Qualquer escola que tenha de impor o ensino da democracia já é suspeita. Quanto menos democrática é uma escola, mais necessidade tem de ensinar idéias democráticas. Se as escolas fossem realmente democráticas, no sentido de oferecerem às crianças as oportunidades de terem a experiência da democracia na prática, não sentiriam a necessidade de as doutrinar com lugares - comuns sobre a democracia. De novo, eu me sinto um felizardo por a minha experiência escolar não se ter baseado na memorização de falsidades sobre quão maravilhosa era a nossa democracia. A influência de Dewey não se estendeu a todas as escolas, apesar de ele ter sido uma figura eminente do liberalismo norte-americano e um dos principais filósofos do século XX.Também me lembro que, quando moço, fui conselheiro num campo de férias, e presenciei com freqüência o sucesso de um processo de doutrinação semelhante ao da recitação do Juramento de Fidelidade que você descreveu há pouco. Lembro-me de ver crianças emocionando-se muito, a ponto de chorarem, ao recitarem as canções patrióticas hebraicas que nem sequer compreendiam. Algumas das crianças diziam as palavras completamente erradas, mas isso não reduzia o seu estado emocional. O verdadeiro ensino democrático não gira em torno da instilação do patriotismo ou da memorização mecânica dos ideais da democracia. Nós sabemos que os estudantes não aprendem dessa maneira. A verdadeira aprendizagem ocorre quando os estudantes são convidados a descobrir por eles próprios a natureza da democracia e o seu funcionamento. A melhor maneira de descobrir como funciona uma democracia funcional é praticá-la.
E isso as escolas não fazem muito bem. Uma boa medida do funcionamento de uma democracia nas escolas e na sociedade é o grau de aproximação entre a teoria e a realidade, e é sabido que tanto nas escolas como na sociedade existe um grande abismo entre as duas.
Em teoria, numa democracia todos os indivíduos podem participar de decisões que têm a ver com as suas vidas, determinando como são obtidos e utilizados os recursos públicos, que política externa a sociedade deveria seguir e assim por diante. Um teste simples mostrará o abismo entre a teoria, que diz que todos os indivíduos podem participar nas decisões que envolvem as suas vidas, e a prática, em que o poder concentrado pelo governo funciona como um limitador da capacidade dos indivíduos e grupos de gerirem os seus próprios assuntos ou, por exemplo, de determinarem a forma da política externa que querem adotar.Tomemos os presentes bombardeio em Kosovo e no Iraque. A situação no Kosovo antes do bombardeio de 24 de Março [de 1999] era, no mínimo, terrível. No dia 24 de Março começou o bombardeio e em poucos dias apareceram milhares de refugiados vindos de Kosovo e houve um aumento dramático de estupros, matanças em massa e tortura – uma conseqüência direta e previsível do bombardeio que foi executado com a declarada intenção de ser um esforço humanitário para proteger a população de etnia albanesa. Bom, não é preciso um grande esforço para perceber que uma situação que era terrível se tornou catastrófica depois do bombardeio, que uma situação horrível no Kosovo acabou ganhando proporções catastróficas depois da "intervenção humanitária" da OTAN. Seguindo a Declaração Universal de Direitos Humanos, a OTAN reclamou o direito a uma "intervenção humanitária" para por fim à limpeza étnica de albaneses. Como podemos ver, os bombardeios da OTAN conduziram diretamente a um aumento radical na limpeza étnica e da carnificina no Kosovo: conduziram a um forte aumento dos assassinatos, estupros e tortura de pessoas de etnia albanesa, o que não constitui grande surpresa. De fato, o comandante da OTAN, General Wesley Clark, informou imediatamente à imprensa que este seria um efeito "inteiramente previsível" do bombardeio.
Se fôssemos aplicar a mesma linha de argumentação que justificou a "intervenção humanitária" no Kosovo, a OTAN deveria bombardear outros países, por exemplo, a Colômbia, e também um dos seus membros, a Turquia. De acordo com estimativas do Departamento de Estado dos EUA, a taxa anual de assassinatos políticos praticados pelo Estado e pelo respectivo aparelho paramilitar na Colômbia está quase no mesmo nível que no Kosovo antes dos bombardeios da OTAN, e há aproximadamente um milhão de refugiados fugindo dessas atrocidades. Com o aumento da violência nos anos 90, a Colômbia tornou-se o principal destinatário de armas e treino estadunidenses no hemisfério ocidental e essa assistência está a aumentar sob o pretexto de uma "guerra contra a droga", rejeitado por todos os observadores sérios. A administração Clinton foi particularmente generosa nos elogios ao presidente da Colômbia, César Gaviria, cuja administração foi responsável por "chocantes níveis de violência", de acordo com organizações de defesa dos direitos humanos. No caso da Turquia, a repressão dos curdos nos anos 90 ultrapassa largamente a escala de Kosovo antes dos bombardeios da OTAN. Esta atingiu o seu auge em meados da década de 90: um índice é a fuga de mais de um milhão de curdos da província para a capital oficial curda, Diyarbakir, entre 1990 e 1994, à medida que o exército turco devastava o campo. Em 1994 foram estabelecidos dois recordes: foi o "ano de pior repressão nas províncias curdas" da Turquia, segundo relatos in loco de Jonathan Randal, e o ano em que a Turquia se tornou o "maior importador individual de material de guerra estadunidense e, assim, o maior comprador de armas do mundo". Quando grupos de defesa dos direitos humanos expuseram a utilização de jatos estadunidenses pela Turquia para bombardear aldeias, a administração Clinton usou subterfúgios para contornar leis que exigiam a suspensão da entrega de armamento, tal como fazia na Indonésia e em outros locais. De novo, se seguíssemos a linha de argumentação da Declaração Universal de Direitos Humanos, citada pela OTAN como justificativa para os bombardeios em Kosovo, a OTAN teria justificativas mais que suficientes para bombardear Washington.
Vejamos o caso do Laos. Durante muitos anos, milhares de pessoas, na sua maioria crianças e camponeses pobres, foram mortas nas planícies de Jarros, no norte de Laos, aparentemente o cenário do mais violento bombardeio de alvos civis na história – e talvez o mais cruel. O violento ataque de Washington a uma sociedade de camponeses pobres não tem nada a ver com as suas guerras na região. O pior período começou em 1968, quando Washington foi obrigado a iniciar negociações (sob pressões populares e econômicas), interrompendo o bombardeio sistemático do Vietnam do Norte. Henry Kissinger e Richard Nixon decidiram então desviar os aviões para o bombardeio do Laos e do Camboja. As mortes deveram-se às "bombies", pequenas armas antipessoais muito piores que minas terrestres: foram concebidas especificamente para matar pessoas sem afetaram caminhões, edifícios etc. A planície ficou cheia de centenas de milhões destes dispositivos assassinos que, de acordo com o fabricante, Honeywell, apresentam uma taxa de falha de detonação de 20 a 30 por cento. Estes números sugerem um controle de qualidade notavelmente fraco ou uma política de assassinato de civis de ação retardada. As bombies foram apenas uma fração da tecnologia utilizada, que incluiu mísseis avançados que penetravam em cavernas onde famílias procuravam abrigo.
Atualmente, a estimativa é de centenas de baixas anuais provocadas por bombies, podendo atingir "uma taxa anual de 20.000 acidentes no país", resultando em morte, em mais da metade dos casos, segundo o relato do veterano correspondente na Ásia, Barry Wain, da edição asiática do Wall Street Journal. Uma estimativa conservadora é, então, que a crise apenas deste ano que passou é aproximadamente comparável a Kosovo antes dos bombardeios. Contudo, as mortes estão muito mais concentradas entre as crianças – mais de metade, segundo as análises publicadas pelo Comitê Central Menonita que trabalha na zona desde 1977 para reduzir as contínuas atrocidades.
Os meios de comunicação social dos Estados Unidos aplaudiram a intervenção da OTAN em Kosovo para impedir a limpeza étnica dos albaneses, apesar de o bombardeio ter aumentado tragicamente a limpeza étnica e outras atrocidades. Mas no caso de Laos, em que somos diretamente responsáveis pelas mortes, a reação dos EUA nada fez. E os meios de comunicação social e os comentaristas mantiveram-se calados, respeitando as normas segundo as quais a guerra no Laos era considerada uma "guerra secreta" – ou seja, bem conhecida, mas abafada, como foi o caso do Camboja a partir de Março de 1969. O grau de autocensura foi extraordinário nessa altura, tal como é atualmente. A relevância deste exemplo chocante é óbvia. Enquanto os meios de comunicação social dos EUA exultaram quando o Tribunal Internacional indiciou Slobodan Milosevic por crimes contra a humanidade, Kissinger, um dos arquitetos da carnificina no Laos, continua livre e é celebrado como "perito" cujo "ponto de vista" sobre os bombardeamentos no Kosovo era ansiosamente procurado pelos meios de comunicação social. No caso do Iraque abundam as atrocidades, com civis iraquianos sendo chacinados por uma forma particularmente maliciosa de guerra biológica. Em 1996, quando questionada sobre a morte de meio milhão de crianças iraquianas em cinco anos, a secretária de Estado Madeleine Albright comentou na Televisão Pública dos Estados Unidos que "nós achamos que o preço vale a pena". De acordo com estimativas atuais, ainda são mortas cerca de 4.000 crianças por mês e o preço "ainda vale a pena". Uma análise mais cuidadosa da Guerra do Golfo revela os mesmos princípios condutores da "intervenção humanitária" ou da intervenção para salvaguardar "democracias" dos EUA em todo o mundo. Os meios de comunicação social e as classes instruídas repetem obedientemente as palavras do presidente George Bush [pai] de que "a posição da América é a mesma de sempre – contra a agressão, contra aqueles que utilizam a força para se sobreporem à lei", apesar de alguns meses antes ele ter violado os princípios da América "contra a agressão, contra aqueles que utilizariam a força para se sobreporem à lei" ao invadir o Panamá. O presidente Bush [pai] foi o único chefe de estado a ser condenado pelo Tribunal Mundial pelo "uso indevido de força" – na guerra dos EUA contra a Nicarágua. A reivindicação de Bush de "altos princípios" foi uma anedota, já que os Estados Unidos não defenderam nenhum alto princípio no Golfo, o mesmo valendo para qualquer estado envolvido. A resposta sem precedentes a Saddam Hussein não se deveu à sua agressão brutal – foi porque ele pisou os calos errados, tal como Manuel Noriega fizera alguns anos antes. Ambos eram rufias que já tinham sido amigos do presidente Bush. Saddam Hussein é um assassino sem escrúpulos – como era antes da Guerra do Golfo, quando era nosso amigo e um dos parceiros comerciais preferidos. A sua invasão do Kuwait foi certamente uma atrocidade, mas não chegou aos pés das atrocidades cometidas com o apoio dos EUA e chegou ao mesmo nível de muitos crimes semelhantes levados a cabo pelos Estados Unidos e os seus aliados.
TIMOR - LESTE
Noam Chomsky – Por exemplo, a invasão e anexação de Timor - Leste pela Indonésia quase atingiu proporções de genocídio: um quarto da população (700.000) foi morta, um massacre que excedeu o de Pol Plot, comparativamente à população, no mesmo número de anos. Tanto os Estados Unidos como os seus aliados apoiaram estas atrocidades. O ministro dos Negócios Estrangeiros australiano justificou o seu consentimento à invasão e anexação de Timor - Leste dizendo simplesmente que "o mundo é um lugar bastante injusto, cheio de exemplos de aquisição pela força". Contudo, quando o Iraque invadiu o Kuwait, o seu governo denunciou a invasão com uma declaração em alto e bom tom de que os "países grandes não podem invadir vizinhos pequenos e ficar incólumes". As verdadeiras preocupações da política dos EUA no Golfo eram de que as incomparáveis reservas energéticas do Médio Oriente se mantivessem sob o nosso controle e que os enormes lucros por elas produzidos ajudassem a suportar as economias dos Estados Unidos e do seu cliente britânico.
Donaldo Macedo: É realmente uma constatação triste, a de que apesar de os fatos que agora relatou serem tão óbvios, a classe instruída dos EUA, à exceção de uma pequena minoria, ter sido incapaz de estabelecer as ligações históricas necessárias para desenvolver uma compreensão rigorosa do mundo. O vice-presidente Dan Quayle teve uma leitura correta da Guerra do Golfo, ainda que não intencionalmente, ao descrevê-la como "uma vitória avassaladora para as forças agressoras". O presidente Bush [pai] foi apanhado num lapso freudiano semelhante durante uma entrevista conduzida pela âncora do canal de televisão de Boston, Channel 5, Natalie Jacobson. Ao referir-se à Guerra do Golfo, Bush disse "Cumprimos a nossa agressão" em vez do certamente pretendido "Cumprimos a nossa missão". As palavras aparentemente trocadas de Bush e de Quayle põem a nu a pedagogia das grandes mentiras. As suas declarações capturam com precisão a essência da hipótese colocada por José Ortega y Gasset, de que se aquilo a que chamamos a nossa civilização fosse "deixada em paz" e deixada à mercê de comissários como Henry Kissinger daria origem ao renascimento do primitivismo e do barbarismo.
Os seus exemplos do barbarismo no Kosovo, Turquia, Colômbia e Laos apontam para o barbarismo da civilização. Em muitos casos, o alto nível de sofisticação técnica atingido pela nossa assim chamada civilização tem sido utilizado das formas mais bárbaras, como foi provado pela utilização das câmaras de gás nos judeus e os bombardeamentos do Laos e do Camboja. Com certeza não é uma civilização iluminada aquela que se orgulha de reduzir o Iraque a um nível pré-industrial – matar dezenas de milhares de vítimas inocentes, incluindo mulheres e crianças, e mantendo Saddam Hussein, o nosso senhor da guerra, no poder.
Noam Chomsky – É habitualmente esperado que a ação militar dos EUA deixe o tirano assassino do Iraque no poder, prosseguindo com o seu programa de armamento e minando qualquer inspeção internacional que exista. Também se devia chamar a atenção para o fato de os piores crimes de Saddam terem sido cometidos enquanto ele era um aliado e um parceiro comercial favorecido dos EUA e que, imediatamente depois de ele ter sido expulso do Kuwait, os EUA mantiveram-se como observadores silenciosos enquanto ele chacinava iraquianos rebeldes – primeiro os xiitas e depois os curdos – recusando mesmo o acesso destes às armas capturadas aos iraquianos. As histórias oficiais raramente transmitem uma imagem exata do que está a acontecer. As histórias oficiais também não criarão as estruturas para desvendar a verdade. Uma educação que busca um mundo democrático deveria fornecer aos estudantes as ferramentas críticas para fazer as ligações que desvendariam as mentiras e os enganos. Em vez de doutrinar os estudantes com mitos democráticos, as escolas deveriam envolvê-los na prática da democracia.
Donaldo Macedo: É pouco provável que as escolas deixem de doutrinar os estudantes com mitos, já que é através do poder da propagação dos mitos que a ideologia dominante tenta abafar a manifestação de uma democracia verdadeiramente cultural e manter a presente hegemonia cultural e econômica. Eu concordo consigo quando diz que as escolas deveriam envolver os estudantes na prática da democracia. Contudo, como já apontou diversas vezes, para o conseguir as escolas têm de fornecer aos estudantes as ferramentas críticas para desvendar o conteúdo ideológico dos mitos, para conseguirem começar a compreender melhor porque é que, por exemplo, o professor de David Spritzler e o diretor da escola, que tinham investido fortemente no sistema doutrinal dominante, se deram ao trabalho de sacrificar os princípios do próprio Juramento de Fidelidade para impedirem Spritzler de viver na verdade, uma vez que indivíduos que querem viver na verdade representam uma ameaça real ao sistema doutrinal dominante e devem ser eliminados ou, pelo menos, neutralizados. Por isso, não devemos ficar surpresos com o fato de o professor e o diretor tentarem impedir David Spritzler de apontar a hipocrisia e a diferença de classes na nossa sociedade supostamente sem classes.
Noam Chomsky – O mito de que vivemos numa sociedade sem classes é uma farsa, mas uma em que a maioria das pessoas acredita. A minha filha, que é professora numa universidade pública, conta-me que a maioria dos estudantes dela se consideram de classe média e não mostram qualquer sinal de consciência de classe.
Donaldo Macedo – O próprio discurso acadêmico aponta para a ausência de consciência de classe. Apesar de nos meios de comunicação social se encontrar o termo classe trabalhadora e também classe média (como "uma redução dos impostos para a classe média"), nunca se vê mencionada uma classe dominante ou classe alta.
Noam Chomsky – Uma "classe dominante" de certeza não encontrará. É simplesmente suprimida. E os estudantes da classe trabalhadora como os da turma da minha filha não se consideram da classe trabalhadora. Isso é outro sinal de uma verdadeira doutrinação.
Donaldo Macedo – A elite dominante, ajudada pela intelligentsia, fez grandes esforços para criar mecanismos que perpetuam o mito de que os Estados Unidos são uma sociedade sem classes. Com todo o debate acerca da falha da educação neste país, uma das variáveis que nunca é mencionada é a classe, apesar de a classe ser um fator determinante para o sucesso escolar. A maioria dos estudantes que não passam de ano provém geralmente das classes mais baixas e, contudo os educadores evitam religiosamente utilizar a classe como um fator nas análises e afirmações. Em vez disso, criam todo o gênero de eufemismos como "economicamente marginais", "estudantes desfavorecidos", estudantes "em risco" etc, como um processo de evitar nomear a realidade da opressão de classes. E no caso de se utilizar a classe como um fator de análise, é-se imediatamente acusado de guerra de classes. Lembra-se da campanha presidencial de 1988, quando George Bush admoestou o seu oponente dizendo, "Não vou deixar que esse governador liberal divida esta nação... Eu acho que isso é para as democracias européias ou algo do gênero. Não para os Estados Unidos da América. Não seremos divididos por classes... somos o país dos grandes sonhos, das grandes oportunidades, do jogo limpo, e esta tentativa de dividir a América em classes falhará porque o povo americano irá perceber que este é um país muito especial, porque qualquer pessoa a quem seja dada uma oportunidade pode vencer e realizar o sonho americano".
Noam Chomsky – Sim, é um país muito especial se for rico. Para tomarmos um exemplo muito simples, repare como o sistema tributário se torna cada vez menos progressivo ao enriquecer os ricos através de um grande corte fiscal e enormes subsídios que ao longo da história têm sido dados às corporações. Bush está certo ao falar de uma guerra de classes. Porém, é uma guerra de classes concebida para esmagar ainda mais os pobres. Todos os indicadores apontam que a pobreza se tem mantido alta entre as crianças, e a desnutrição está piorando com os programas levados a cabo para promover os "valores familiares". O assalto ao estado do bem-estar social serve para esmagar ainda mais os pobres, as mães que recebem pensões e outras pessoas que precisam de ajuda, enquanto mantém intacta a poderosa ama, subsidiando corporações com transferências maciças de dinheiro. Nós temos um sistema de segurança social, mas é uma segurança social para os ricos. Para se manter um sistema de segurança social em bom estado de funcionamento para os ricos, é preciso ter uma classe empresarial altamente consciente. As outras pessoas têm que ser convencidas de que vivem numa sociedade sem classes. As escolas sempre estiveram a serviço da manutenção deste mito.
NOTAS

Este artigo foi adaptado para o português do Brasil de
http://resistir.info/varios/chomsky_educacao.html